quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Uma analogia que surpreende: Porque a Maria da Penha não é igual ao João!

Por: Sirlanda Selau
Militante da Marcha Mundial das Mulheres Porto Alegre
Primavera de 2008.

Incansavelmente se afirma, que a Lei Maria da Penha, é um marco importante no combate a violência sexista e uma conquista das mulheres. Com ela se recepciona no direito brasileiro, por força de lei, que alterou o Código Penal de 1940, o amparo às mulheres vitimas de violência doméstica, estabelecendo formas legais de amparo, proteção e interpretação disto que é uma realidade.
A concepção da lei, especialmente no que se refere à tipificação e a interpretação da norma, no sentido de cumprir sua função social, qual seja, o enfrentamento a violência contra as mulheres, afirma taxativamente qual é o seu objeto, qual o bem, que se pretende proteger. E referenciando pela boa interpretação jurídica, pode – se dizer que a Lei remonta um conceito importante no direito, que deriva da máxima aristotélica, de tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais. Com o ímpeto, de promover processos de equilíbrio entre as desigualdades, e em especifico aqui, referindo – se a desigualdade de gênero, exercida dos homens sobre as mulheres.
Neste sentido, nos surpreende a decisão do Exmo. Sr. Juiz Mário Roberto Kono, do Juizado Especial Criminal Unificado de Cuiabá, que aplicou a Lei Maria da Penha, “por anologia” ao caso concreto, onde a vitima da violência é um homem, conforme destaca a noticia:
“A Justiça de Cuiabá determinou, de maneira inédita, que um homem que vem sofrendo constantes ameaças e agressões por parte da ex-companheira após o fim do relacionamento seja protegido pela Lei Maria da Penha, criada originalmente com o objetivo de proteger a mulher da violência doméstica praticada pelo homem. As informações são da assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT).
A vítima entrou na justiça alegando que vem sofrendo agressões físicas, psicológicas e financeiras por parte da ex-mulher e apresentou vários documentos para sustentar sua acusação, tais como o pedido de exame de corpo de delito, a nota fiscal de conserto de veículo avariado pela ex-companheira e diversos e-mails difamatórios e intimidatórios enviados pela ré”

Aqui não se pretende pecar, por postular uma interpretação literal da referida Lei, como também, por aceitar a analogia empreendida. A interpretação neste caso em especifico, contraria o sentido, a finalidade a que ela se reserva. Desconsidera que o propósito, que é intervir em situação especifica, onde os pólos que se conflitam, não estão equiparados. E que passa pelo aspecto jurídico das relações sociais, equalizá-los.
Se por um lado, descontextualiza o sentido da Lei, a decisão também busca se justificar, pelo reconhecimento de uma relação de posse, e desconsidera qual é o processo de dominação que a Lei veio enfrentar: a relação de submissão que se cria na esfera particular em relação às mulheres, onde a violência é a forma mais nítida pela qual se expressa.
Surpreende-nos a decisão, porque coloca em situação de igualdade aquilo que não é igual e inverte os argumentos que justificaram a aprovação deste marco legal no país. Também, porque com isso, o desafio do acesso à justiça, pelos sujeitos de direitos que se dirige a Lei, se torna mais preocupante, posto que por conta da própria violência sofrida, a maioria das situações de violência doméstica, já não são denunciadas, e uma aplicação indiscriminada deste dispositivo, despotencializa este desafio.
Mas não só por isto. Surpreende, pois a analogia, e o conjunto de elementos que sustentam as decisões e orientam a boa interpretação jurídica, podem ser utilizados na maneira necessária, para justificar posições diversas. E neste caso, ficou a serviço de justificar uma linha de pensamento que versa sobre a manutenção de interesses que não dialogam com a promoção da igualdade. Mas ao contrario, buscam cavar precedentes que acumulam para as desigualdades que deveriam ser combatidas.
O enfrentamento a constitucionalidade da Lei Maria da Penha que se verifica, bem como, os obstáculos que se criam para a sua aplicação eficaz, devem ganhar nossa atenção. Especialmente, quando parte das estruturas jurídicas do país, pois se traduz como um contra-senso. Já que é na organização judiciária que se produz à efetividade das normas, pela sua aplicação. E de onde se espera a realização da justiça, na intervenção sobre os conflitos sociais.
O episódio de Cuiabá serve como alerta! Naquilo que observamos na conquista de legislações avançadas, essencialmente após a Constituição Federal de 1988, no sentido de que há muito por conquistar na ordem de sua aplicação e capacidade de produzir efeitos reais na vida das pessoas. Que é preciso fazer o encontro das pessoas com seus direitos. Que é indispensável uma interpretação jurídica, livre dos interesses de manutenção da dominação que estrutura nossa cultura. Que é urgente uma interpretação jurídica que faça o direito instrumento de justiça.
A Lei Maria da Penha é sem dúvida uma conquista na história de lutas das mulheres brasileiras organizadas, e de todas na sociedade, pois reconheceu uma realidade onde está submetido o conjunto das mulheres. No entanto, a luta pela erradicação da violência sexista, não se esgota com ela. Cabe agora a todos e todas fazer pela sua realização coerente e efetiva, como um dos mecanismos importantes de combate a esta violência especifica. Que é construída como processo social de desigualdade e desigualmente deve ser tratada.

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